O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, em 6/11/2024, a votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.135, que trata de uma importante mudança promovida, em 1998, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Na esteira das medidas neoliberais, patrocinadas por FHC, o Congresso Nacional aprovou a mais profunda reforma administrativa pós-1988, por meio da Emenda Constitucional (EC) nº 19/1998.
Uma das alterações aprovadas na EC 19/1998 foi no Art. 39 da Constituição Federal. Para melhor compreensão, segue o cotejo das mudanças:
CONTEÚDO ORIGINAL DO ART. 39 | TEXTO APROVADO PELA EC 19/1998 |
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. | A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. |
Como se pode observar, a Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu que o servidor público deveria ser contratado, exclusivamente, por regime jurídico único, denominado regime estatutário, aplicável para a contratação de servidores públicos da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações públicas.
Por sua vez, a EC 19/1998 acabou com a contratação obrigatória de servidores pelo regime jurídico único (RJU), permitindo-se, na prática, outras formas de contratação, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Essa exclusividade na forma de contratar os servidores públicos, tão bem delineada na Constituição de 1988, visava garantir a isonomia, em sintonia com os princípios constitucionais previstos nos artigos 1º, IV, e 37, caput, da Constituição Federal, evitando múltiplas formas de contratação, como ocorria antes de 1988. A adoção do RJU tinha o objetivo de evitar, por exemplo, que servidores com a mesma função fossem tratados de forma diferenciada, o que era comum até 1988.
No entanto, durante a década de 1990, servidores públicos e aposentados foram considerados como a escória do Estado. Assim, a elite política da época, com forte apoio dos conglomerados de comunicação, como VEJA, Globo e Folha de São Paulo, atacou impiedosamente os direitos dos servidores públicos e aposentados.
Foi nesse contexto que a EC 19/1998 foi aprovada, alterando, inclusive, a forma de contratação dos servidores públicos.
O que foi decidido pelo Supremo?
Em 2000, os partidos de esquerda, com forte atuação no Congresso, como o PCdoB, PT, PDT e PSB, questionaram no Supremo Tribunal Federal (STF) pontos da reforma administrativa do governo FHC. Entre eles, a alteração do Art. 39 da Constituição Federal, que determinava o fim do regime jurídico único.
Esses partidos contestaram a forma como o Congresso aprovou a mudança na Constituição. Para a esquerda, houve irregularidades no processo legislativo, já que o texto da emenda não teria sido aprovado em dois turnos pela Câmara e pelo Senado.
Em 2007, o STF suspendeu a aplicação da regra, aguardando uma decisão definitiva sobre o caso. Com isso, a flexibilização caiu e a obrigação do regime jurídico único voltou a vigorar.
Depois de mais de duas décadas, o Plenário do STF, por oito votos a três, entendeu que a mudança no texto do Art. 39, promovida pela EC 19/1998, não violou a Constituição Federal. Ou seja, para a maioria do Supremo, a alteração aprovada pela EC 19/1998 seguiu o rito legal previsto pela Constituição Federal.
Portanto, é importante esclarecer que não foi o Supremo que derrubou a exclusividade do servidor público ser contratado pelo RJU. Quem decretou a morte e sepultou esse direito foi o PSDB e os partidos que atualmente comandam a direita e o Centrão, travestidos de outras denominações (Partido Liberal, União Brasil, Republicanos, Novo etc.). O Supremo não se manifestou sobre o mérito da mudança. O que o Supremo decidiu foi que não houve inconstitucionalidade quanto à tramitação da EC 19/1998.
E quais as consequências dessas mudanças para os servidores públicos?
Os atuais servidores não terão alteração na forma de contratação, pois a decisão só se aplica às futuras contratações.
Para as futuras contratações, os entes públicos poderão contratar servidores pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que afetará diversos aspectos da relação de trabalho, incluindo: regime de previdência, direitos previstos nos RJUs, planos de cargos, carreiras e salários.
Previdência. Os servidores públicos contratados pela CLT contribuirão para o regime geral de previdência, o INSS. Portanto, os regimes próprios de previdência sofrerão, ao longo dos anos, um impacto atuarial, pois não haverá contribuição dos novos servidores, o que pode resultar na escassez de recursos para esses regimes próprios. Este cenário pode até levar ao aumento das contribuições para os atuais servidores públicos ou à falência dos regimes próprios. Outra consequência possível é o retorno de alguns órgãos públicos para o regime geral de previdência. Espera-se uma alteração na legislação previdenciária, a depender do número de contratações pela CLT.
Direitos típicos do RJU. O regime celetista não oferece os direitos consagrados em vários regimes estatutários (anuênio, licença-prêmio, ascensões funcionais, progressões, licenças etc.). Na CLT, há a previsão apenas de salário, que não pode ser inferior ao salário-mínimo, 13º salário, férias e adicional de insalubridade, este calculado sobre o salário-mínimo. É certo que os direitos típicos dos RJUs estão cada vez mais escassos, em razão dos ataques promovidos pelos gestores públicos, especialmente nos municípios.
Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS). A EC 19/1998 também excluiu a obrigatoriedade de instituição do PCCS para os servidores públicos. Evidentemente, a contratação pela CLT não impede a adoção de PCCS. Há, no Brasil, empregados públicos contratados pela CLT e que possuem PCCS, como os Correios, Caixa Econômica e EBSERH.
E o concurso público, como fica?
O ingresso no serviço público continua sendo por concurso público, por meio de processo seletivo que contenha a obrigatoriedade de provas ou provas e títulos (Art. 37, II, da Constituição Federal). São falsas as notícias que afirmam o fim do concurso público.
E a estabilidade no emprego?
Embora alguns jornais e blogueiros (em busca de cliques) venham enfatizando o fim da estabilidade para os novos contratados pelo regime celetista, a análise não pode ser feita de forma simplista. Isso porque não houve alteração na Constituição no que diz respeito à estabilidade do servidor público. Além disso, a legislação vigente no Brasil obriga a administração pública a motivar seus atos. Assim, o servidor/empregado público, contratado sob o regime celetista, não pode ser demitido sem justa causa, como alguns estão divulgando. Deve-se apurar a eventual falta, com direito de defesa, pois o ato de demissão precisa ser motivado. Essa motivação não fica a critério do administrador. O empregado que se submete ao concurso e passa a ser regido pela CLT só pode ser demitido por justa causa, após cometer uma das faltas graves elencadas no Art. 482 da CLT (improbidade, desídia, mal procedimento, entre outras).