Ala improvisada é alvo de constantes reclamações

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Pacientes sofrem à espera de leitos num espaço improvisado. Agarram-se à esperança enquanto o dia da cirurgia não vem. Muitos são idosos. Governo promete sanar o problema.

Coxa direita enfaixada, pé imobilizado, escara em parte do corpo e peito nu sobre a maca, o senhor cutuca o jovem de camiseta, chinelo e jeans – ali por ocasião do horário de visitas e não pelo ofício jornalístico. O gesto interrompe um diálogo sobre as agonias de um lugar onde até o tempo é incerteza. O rapaz vira. O olhar de Raimundo era abismo; a fala, um sussurro. “Não tem nada doendo. Só queria conversar”.

“Tenha um pouco mais de calma. Vai dar tudo certo. Já já o senhor volta pra casa”. E Raimundo chorou. No fim de tarde do último sábado, 19, a lágrima era tudo o que ele podia dizer sobre uma agonia em choque há duas semanas com angústias alheias.

No amontoado de leitos improvisados do “Corredor 1” do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), pacientes e acompanhantes têm uma vaga ideia de vida. São dores e retalhos de memória. (Sobre)Vivem num mundo onde a adversidade constante é conciliadora. Do único espaço disponível para banhos à entrada do sol escaldante pela parte superior da vidraça.

Da recorrente falta d’água para beber à “dormida” de amigos/familiares sobre cadeiras de plástico. É encostar a cabeça numa pontinha de ferro e cochilar. Na sorte, um gatuno aproveita a liberação da maca de uma senhorinha vencida pela enfermidade e esconde o colchão para passar a madrugada com o mínimo de conforto. “Aqui, sofre até quem não tá doente. Mas é o jeito. Não tem outro canto.”

O “piscinão” do HGF, como popularizou-se o setor, é canto de divisão de queixumes e multiplicação de alegrias, mesmo as miúdas e/ou intermitentes. É onde a moça insiste no pó facial enquanto conversa com a melhor amiga. “Mulher, pra quê isso tudo? Tu tá num hospital!”. “Valha…porque tô doente tenho que ficar feia?”.

É onde o senhor de camisa cor amarelo-ovo abre o sorriso ao ver filha, genro e netos cruzando a porta do setor de Emergência com afagos fartos. “Todo dia vem alguém. No fim de semana, vem mais. Se não vier, fico é triste. Já é ruim estar doente; imagine sozinho.”

Foi onde seu Manuel transformou-se no que quis (ou no que pode) à espera da cirurgia no pé durante 16 longos dias antes de ser submetido ao procedimento e estar prestes a voltar à rotina do aconchego dos braços da esposa e dos dois filhos, em Russas (a 160 quilômetros da Capital). Do contrário, a loucura seria imperativa. O carinho faz falta num ambiente rarefeito de afetos, sem ruídos do mundo real e com cheiro de formol e rasgo de gaze.

Algumas noites parecem intermináveis. “Faz frio por causa do ar-condicionado e tem paciente que endoida, começa a gritar ou a gemer de dor, chamando pelo médico…”, narra quem estava ali há 13 dias e já viu gente morrer a poucos metros de distância. Uma espécie de seleção artificial resultante da degradação coletiva. “Deram fé que a velhinha do lado da porta que dá pro corredor tinha “feito a passagem” só umas duas horas depois (do óbito). Isso aqui é desumano.”

Médicos, enfermeiros e auxiliares não param. A (sempre urgente) necessidade de troca de curativos (e de tubos de soro e de administração de medicamentos e refeições) não permite esse luxo. Não raro, os profissionais valem-se muito mais da palavra do que de drogas para conter a dor e o desamparo de quem sabe quase nada de quando sairá dali. Às vezes, não há medicação suficiente para todos.

Na segunda vida vivida no “Corredor 1” do HGF, é preciso boa reserva de sonho e esperança. Para não esmorecer na recepção transformada em enfermaria.

ENTENDA A NOTÍCIA

O atendimento no corredor do HGF só deve acabar com a eficácia da parceria entre prefeituras e Governo. Assim, pacientes de outros municípios não precisarão vir para a Capital em busca de atendimento especializado.

Serviço

Denúncias de superlotação

Onde: Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde Pública (avenida Santos Dumont, 1.350)

Telefones: (85) 3452.3719, 3452.3718 ou 3253.4111.

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pacientes esperavam, ontem, por leitos no corredor do HGF.

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leitos serão criados no hospital da Região Metropolitana de Fortaleza, que deve ser aberto em 2014.

 

“A gente faz o que pode”, diz ex-funcionária

Não apenas os pacientes reclamam dos atendimentos serem feitos no “corredor” do HGF. Quem está “do lado de lá do balcão” também. As queixas são de falta constante de medicamentos e materiais. Alguns primários até.

O POVO conversou com uma funcionária e uma ex-servidora do HGF. Ambas pediram reservas quanto à divulgação dos nomes, mas relataram momentos de tensão vividos na unidade. “Em dezembro, a coisa foi feia. Faltou reagente para exames básicos, luva, álcool e o de sempre: remédios. E as auxiliares, que são fundamentais, ainda estavam em greve. Foi o caos”, relata uma.

Diante dos entraves, muitas vezes o tratamento acontece com o que a unidade tem a oferecer; e não baseado no que estudos e protocolos indicam. “Nesse meio termo, muitos pacientes morrem. Acaba sendo uma seleção não tão natural. A gente faz o que pode. Mas nem sempre é suficiente”, acrescenta outra.

A ex-funcionária reforça a tese da Sesa de que o HGF recebe muitos pacientes sem o perfil de alta complexidade. “Muitos não necessitariam estar ali, mas acabam ficando porque a gente não pode negar atendimento. Isto sobrecarrega o hospital. O problema é amplo. Do posto de saúde aos investimentos. De verdade, acho que o Governo tenta. Mas ainda falta muito.”

O POVO procurou a direção do HGF, mas foi informado de que o diretor-geral, Zózimo Luiz de Medeiros, estaria viajando e não poderia conversar com a reportagem. Ninguém do setor de Emergência foi localizado pela assessoria do órgão para falar sobre o assunto.

O secretário Arruda Bastos disse que “a gestão do HGF já melhorou substancialmente”. Ponderou, no entanto, que o excesso de demanda (da própria Capital e do Interior) faz com que, “em um momento ou outro, possa haver dificuldade”. “Temos feito um esforço tremendo. Tudo é consequência de desafogar a rede”, frisou.

Governo promete melhorias para ainda este ano

Para ainda este ano, o titular da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), Arruda Bastos, promete amenizar de forma substancial a superlotação do HGF. Ele afirma que estreitará laços com a Prefeitura de Fortaleza para resgatar leitos perdidos com a não-renovação de convênios entre a gestão municipal anterior e pelo menos dez entidades filantrópicas e hospitais de menor porte que davam retaguarda à unidade.

Os já conveniados devem ter a quantidade de leitos ampliada. “São questões que só precisam de uma decisão. E já existe todo um entendimento. Porque as estruturas já existem.”

Segundo Arruda, o Hospital Regional do Cariri (HRC) já diminuiu a demanda interiorana do HGF. O mesmo deve acontecer quando o Hospital Regional do Norte (HRN), em Sobral, iniciar as atividades, previstas para fevereiro. O prédio foi inaugurado no último sábado, 19.

O aumento da violência é outro fator apontado pelo secretário como motivo da superlotação, assim como o “surgimento de diversas doenças que afetam pessoas de idade (AVC, hipertensão, insuficiência renal etc).”

Bastos cita as policlínicas e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) como outra forma de reduzir a procura pelo HGF. Até 2016, 18 UPAs funcionarão só em Fortaleza numa parceria entre Governo e Prefeitura. “Isso terá impacto direto no HGF porque ele tem demanda de pacientes do porte dele e de pacientes de outras unidades. Quando melhorar a atenção básica (postos de saúde) vai desafogar ainda mais”, prevê.

Ele diz ser “perfeitamente possível” acabar com os populares “piscinões”. A inauguração do Hospital Regional no Sertão Central (HRSC) no fim deste ano é outra aposta de Arruda para o HGF não sofrer tanto.

Até maio de 2014, o Hospital Regional Metropolitano (HRM) deve ser entregue. Uma audiência para tratar do tema ocorreu ontem.

A unidade terá 432 leitos para casos cirúrgicos, clínicos e traumas (um misto de HGF e IJF), sendo 40 para UTI adulto. “Os casos que hoje superlotam os corredores serão compartilhados com as UPAs, filantrópicos, (hospitais) conveniados e do Interior. O governo tem feito um esforço titânico para aumentar a capacidade da rede. Não tem um hospital nosso que não tenha sofrido um aumento grande de leitos. O HGF praticamente dobrou o número de leitos.”

Fonte: jornal O Povo